quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Um dia depois de teres ido...

No dia seguinte à tua partida exibi-te.
Estendi panos e cartazes, cobri de vinís brancos com a tua cara os edifícios mais escuros, projectei slides à maneira antiga nos edifícios mais brancos. Abri-te à cidade que nos viu crescer...
E tal é a pureza da tua face rosada larga de sorriso naquela fotografia que tu tinhas na parede, tal foi a quantidade de meios usados para te mostrar que ninguém sequer questionou se eu estava autorizado a fazer o que fiz.
Seria publicidade? Seria uma declaração de amor?
Todos apontavam com dedos mal educados para os prédios cobertos e os muros com o novo graffitti de ti. Tiravam-se fotos com o telemóvel e enviava-se aos amigos. Os mais românticos entendiam a sorrir para o chão.
Em todo o lado multidões...
'Alguém sabe quem ela é?'
Os capitães dos aviões que chegavam do sul, exactamente a direcção para a qual partiste, anunciavam o estranho cartaz no topo do Pavilhão Rosa Mota, ligeiramente distorcido de convexidade, com uma bela jovem portuguesa.
Os espanhóis repletos de 'miras'
Os franceses cheios de 'ohh la las'
Os chineses carregados de máquinas fotográficas vão levar-te com eles para casa naquela vista aérea e mostrar aos amigos pasmados de admiração.
Na ponte D. Luís e na da Arrábida dois panos a roçar o rio... Os cruzeiros que ontem subiam e desciam despreocupadamente hoje paravam na dúvida de passar. Também lá os turistas refilavam admirados com semelhante profanação dos monumentos que não igualam os dos postais.
'É brincadeira.'
'É nova demais para ser política.'
'É parecida com a da televisão. Aquela que...'
Lá para as 12 horas chega a segunda vaga. Junto ao mar, na Foz que nos uniu, cinquenta fogões refogavam em caçarolas gigantes a infusão de orquídeas, pêssegos e açúcar amarelo que melhor copiavam o teu aroma. O vento arrastou-o, como previsto, para dentro da cidade numa neblina invisível e abrangente com gradações de intensidade. E se o visível da tua cara foi polémico não houve qualquer contestação ao teu aroma. Cheios de inspirações fundas todos os portuenses reconheceram a falta que lhes ias fazer sem o saberem. Todos procuravam com cabeças balançantes o aroma que desvanecia quando uma rajada mais forte o afastava.
De todo o lado tu. O que era mais reconhecível de ti. Uma ultima inundação...
O que consegui reproduzir.
Não encontrei música que te descrevesse, nem mesmo entre as nossas. Não encontrei gravações da tua voz em lado nenhum.
Também não encontrei tecido, casca de fruta ou papel que simulasse com exactidão a textura da tua pele. O seu calor e imperfeições.
Tudo é demasiado rugoso ou frio ou liso ou drapejante.
Porque tu não eras mais nem menos. Eras aquilo.

Para copiar o teu sabor encontrei pêras. Não só era o sabor habitual do teu hálito como todas aquelas grainhas tinham o tamanho exacto das tuas papilas gustativas. Numa receita de Compal de pêra clássico dissolvido numa razão de duas partes de água para uma e meia de sumo encontrei a espessura exacta da tua saliva.
E se eu controlasse as chuvas faria cair torrencialmente este sumo semidesactivado para que todas as pessoas te pudessem saborear lentamente. Engarrafar-te e levar-te para casa. Servir-te como refresco tal como quando chegavas nos meses de verão e parecias transportar a primavera inicial contigo de arrasto. Todos poderiam sentir o pegajoso do sumo açucarado colar na sua pele como os teus beijos colavam na minha naquelas manhãs intransmissíveis.
E queimava de ciúme por saber que todos sabiam os segredos de ti, com excepção do som da voz e do toque da pele, mas tu és grande demais para te encerrar. És um segredo que não posso esconder. Não aguento ter-te aqui fechada para sempre só para mim.
Nascemos de tantas partilhas que o nosso fim nunca podia ser solitário...

Um dia depois de teres ido embora, a cidade foste toda tu em êxtase.

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá! o meu nome é Joana e comecei há uma semana a ler este blog. todos os posts sao interessantes, mas este e o que fala das cartas sem alma são os meus preferidos. muito bem escritos, demonstram um sentimento que eu gostaria de ser capaz de descrever de forma tão eloquente. Parabéns.

Anónimo disse...

*suspiro*
Sim, eu sei! A inveja é uma coisa muito feia...

NM disse...

Obrigado pela visita e pelos elogios Joana. Volte sempre e mais!

Shora Monteiro, "vejo" o teu suspiro e "subo a parada" com um aiiiiii suave...