"Na sala de visitas, o uniforme azul do meu editor. Sentei-me e ele nem disse olá, nem perguntou como estás?, olhou para as trinta páginas na minha mão, como se as pedisse. Estendi-lhas. Agarrou-as muito depressa, abriu muito os olhos e mergulhou-os dentro da página. Indiferente às crianças que faziam uma roda à nossa volta e que, em coro, gritavam cabrão cabrão, lia. Como se estivesse sozinho no mundo lia. Eu olhava-o incomodado. E, pela primeira vez, a alegria simples do amor que sentia foi perturbada. Via-o a ler como se devorasse, como se devorasse aquela que me pertencia, como se devorasse aquela que era pura e que eu adorava num amor puro. Via-o ler como se a tocasse ou quisesse tocar, o que para mim era o mesmo crime. Nojento. Segurava as páginas com ambas as mãos e era como se lhe segurasse a cintura nua. Os olhos arregalados examinavam cada pormenor do seu corpo e viam apenas pele e sexo onde eu via amor, amor, ternura e pureza. Às vezes lançava a língua de fora para humedecer os lábios e era ainda mais nojento. Eu não aguentava. Sentia um fogo a arder-me. Tentava fechar os olhos para a ver dentro de mim e não conseguia. Fazia força com as pálpebras, fazia toda a força que podia e não conseguia fechar os olhos. Só conseguia ver a avidez dos seus olhos, só conseguia ver o grande silêncio da minha morte devagar, a minha tortura mais infinita, o fogo a rasgar-me com lâminas de fogo. E quando, finalmente satisfeito, me estendeu as páginas e um olhar de prazer saciado levantei-me e saí. Sei que o meu editor ficou a olhar para mim, sem conseguir falar. Quebrei a roda de crianças à nossa volta e, nas minhas costas, cada vez mais longe, ouvia-as gritar cabrão cabrão."
Por isso nunca falo de ti com ninguém. E quando escrevo de ti poupo injustamente nos adjectivos.
Porque se alguém te visse com os meus olhos, através das minhas folhas, certamente se apaixonaria.
"Uma Casa na Escuridão" - José Luís Peixoto
Por isso nunca falo de ti com ninguém. E quando escrevo de ti poupo injustamente nos adjectivos.
Porque se alguém te visse com os meus olhos, através das minhas folhas, certamente se apaixonaria.
5 comentários:
Que lindo :D :D
ai ai...
FANTASTICO... Não só o texto do Peixoto, mas principalmente a tua declaração de amor..
LINDO!!!
É engraçado quando lemos algo e parece que estão a escrever sobre nós... Este Zé Luís está-me a agradar muito!
vou-te confessar, quer dizer, confidenciar (visto que não és padre... mas cada vez sinto isto como se fosse um pecado!) uma coisa:
a única coisa que conheço do Peixoto é o que ele escreve na Visão... a curiosidade aguçou-se ainda mais com este teu post...
vou ter de resolver isto!
Este "Uma Casa Na Escuridão" também é o meu primeiro de duração completa... mas já tinha lido muitos excertos na net e depois, estava eu a fazer uma espécie de estágio, o tipo vem aqui a uma biblioteca próxima!
Fui lá, falei com ele sobre escrita, comprei o livro e ele autografou com dedicatória!
"Que esta casa de palavras se ilumine com a tua leitura"
:D
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